Não é nossa intenção fazer um estudo
aprofundado desta época, mas chamar a atenção dos interessados para a
antiguidade do povoamento desta região que, no século passado, Joaquim Rasteiro
pressentira e investigara e que actualmente vem sendo sistematicamente estudada.
É importante acentuar que, no que se refere a este período, a região de Azeitão
não pode ser entendida como um todo independente das regiões circunvizinhas e
com a sua especificidade, mas integra-se numa área mais vasta, que se estende do
cabo Espichel à foz do Sado, abrangendo Sesimbra, Tróia e Setúbal, que «integram
um conjunto indissociável de vestígios do processo histórico que teve como palco
a cordilheira da Arrábida». Pelo que nos foi dado conhecer, a ocupação humana
aqui não foi igualmente intensa ao longo dos milhares de anos que este período
engloba, mas abrange largas fases da pré-história, com indústrias especificas,
uma importante ocupação romana e, posteriormente, uma colonização árabe,
sensível, sobretudo, através da toponímia. Deve-se também acentuar que a região
da Arrábida dispõe de condições naturais especialmente propicias à fixação dos
primeiros homens, quer nas «pequenas praias rochosas entre o Espichel e
Sesimbra, quer nas grutas, que foram duplamente utilizadas, como habitat e como
necrópole. Assim, foi possível detectar uma ocupação humana que se pode fazer
remontar a um milhão e duzentos mil anos, indiciável através de uma indústria de
pebble-culture, que teria continuado até há cerca de duzentos mil anos, «na qual
e evidente a persistência de uma tecnologia muito incipiente, com forte domínio
dos seixos afeiçoados do chamado "estilo lusitaniano" ... »'. Calhaus que
revelam afeiçoamento dado pelo homem apareceram quer no conglomerado de
Belverde, entre o Tejo e a base da cordilheira da Arrábida, quer nas praias
fósseis da costa ocidental da Arrábida .
Os períodos subsequentes do Paleolítico
Médio e Superior e do Epipaleolítico são mal conhecidos na região da Arrábida,
mas achados disperses comprovam a existência de povoamento durante esses
períodos, o que pode vir a ser esclarecido com a descoberta de novas jazidas.
Não se conhecem, igualmente, jazidas do Mesolítico, mas já o Neolítico Antigo é
detectável num povoado de ar livre dos arredores de Santana (Fonte de Sesimbra)
e na Lapa do Fumo, gruta junto à falésia litoral entre Sesimbra e o Espichel'.
Outra jazida do Neolítico, a de Galapos, foi destruída pela construção da
estrada'. Os achados encontrados nos locais acima referidos compreendem objectos
de pedra lascada e de pedra polida e cerâmica modelada à mão, muito simples, que
se integra no Neolítico Antigo do Mediterrâneo Ocidental". Essas populações
viveram da recolecçâo de marisco, da pesca e da caça de pequenos animais. Não se
descobriram monumentos megalíticos na região da Arrábida, mas um topónimo, que
desapareceu, pode fazer pressupor a sua existência. Segundo Joaquim Rasteiro no
registo das propriedades da Igreja de Santa Maria de Sesimbra, feito em
princípios do século XV, lê-se: «Affonso Vicente paga ás alampadas da egreja de
S. Maria um foro de 50 soldos, da moeda antiga, de uma herdade que jaz nas Antas
caminho de Azeitão - Affonso Vasques, pescador, paga um foro de 20 soldos de boa
moeda antiga por uma vinha nos chãos acerca das Antas. ». Sabendo-se que a
toponímia é um elemento indispensável na pesquisa de vestígios deste tipo, é
provável que ai existissem dólmenes. Em contrapartida, encontram-se nesta
sepulturas colectivas quer do tipo grutas artificiais, escavadas em calcário as
da Quinta do Anjo (Palmela), quer aproveitando grutas as das Lapas do Fumo e do
Bugio (Sesimbra). Já Joaquim Rasteiro se refere às grutas artificiais informando
que as mesmas «foram exploradas pelos annos 1860 ou 870» ". Essas grutas foram
usadas como sepulturas colectivas durante cerca de mil anos, a última fase do
Neolítico recente até finais da Idade do Cobre. Da mesma fase são as duas grutas
artificiais que se situam na Quinta de S. Paulo, junto do caminho de acesso às
ruínas do Convento da Arrábida; as grutas naturais da Lapa do Fumo e da Lapa do
Bugio também apresentam sepulturas do mesmo período. As populações que aqui
enterravam os seus mortos habitavam locais elevados, facilmente defensáveis,
como o Alto de S. Francisco na serra entre Vila Fresca de Azeitão e Cabanas,
cujos habitantes explorariam a zona agrícola do vale do Alcube.
As grutas artificiais aparecem normalmente
agrupadas, constituindo necrópoles, e são um tipo de túmulo que foi trazido para
o Ocidente por populações do Mediterrâneo Oriental. O espólio encontrado nestas
grutas é bastante variado e original, compreendendo «Ídolos de calcário de
configuração cónica e secção semicircular», decorados com faixas geométricas
(Palmela) enxós com cabo que se julgam ligadas a um culto de utensílios;
ídolos-placa, em xisto, com distinção da cabeça e, por vezes, os braços
esboçados (Lapa do Bugio, Sesimbra)"; e, principalmente, vasos do tipo
«campaniforme». Esta cerâmica, cuja designação se prende a um vaso em forma de
sino invertido, abrange vasos em forma de taça simples, ou com pé, e com o mesmo
tipo de decoração. Esta pode ser feita por incisão ou pela incrustação e pela
aguada e é de tipo geométrico: linhas rectilíneas paralelas, faixas paralelas,
linhas quebradas, faixas ziguezagueanteS22 ou, nas taças, uma composição radial,
partindo do fundo. A cor varia do amarelo-escuro ao castanho, vermelho ou negro
e, nalguns casos, as incisões são preenchidas com matéria esbranquiçada . Existe
um campaniforme internacional e um campaniforme regional, precisamente
característico desta zona: são as «taças de tipo Palmela», caracterizadas por
uma decoração pontilhada do tipo campaniforme, mas conservando as formas
indígenas da «larga taça de bordo espessado internamente e de lábio aplanado
cujos protótipos remontam, pelo menos, ao Neolítico final»". Estas taças
aparecem com «maior incidência em povoados que estiveram desocupados durante o
Calcolitico médio (...) situados nas penínsulas de Setúbal e Lisboa»". O
Calcolitico é o período que corresponde às primeiras utilizações de um metal - o
cobre -, persistindo no entanto os objectos de pedra; as populações desta época
praticam a agricultura, criação de gado, caça, pesca e colheita de marisco;
também conhecem a tecelagem". Esta fase da vida pré-histórica está bem
representada na região de que nos ocupamos, correspondendo, em termos
cronológicos, a meados do milénio III a. C. e prolongando-se até meados do
milénio seguinte, período durante o qual surge a cerâmica campaniforme. São do
Calcolitico as estações de Pedrão, povoado fortificado da encosta oriental da
serra de S. Luís (Arrábida); o castro de Sesimbra; o Moinho do Cuco, sobre o
Vale do Alcube; o Cabeço dos Caracóis (estrada Azeitão-Portinho da Arrábida, nas
proximidades de Porto de Cambas e Coina-a-Velha); Chibanes e Rotura, com vários
níveis de ocupação, do Calcolitico antigo ao recente. Pertencente à Idade do
Bronze, existe na Arrábida o monumento funerário da Roça do Casal do Meio
(Calhariz); trata-se de um monumento de planta circular, com corredor que dava
acesso à câmara funerária com cúpula, onde foi encontrada cerâmica do Bronze
final, uma fíbula e um pente de marfim norte-africano. É provavelmente a
sepultura de dois chefes guerreiros. Cerâmica típica da Idade do Bronze «de
ornatos brunidos», datável dos séculos IX-VII a. C., aparece igualmente na
Arrábida (Lapa do Fumo, Rotura e Chibanes).
Na zona restrita da Arrábida não se
conhecem vestígios do inicio da Idade do Ferro, que, no entanto, está
representada na foz do Sado (subsolo de Setúbal) e na foz do Tejo (Almada), o
que não surpreende pois os estuários de ambos os rios constituíam pólos de
atracção para populações vindas do Mediterrâneo Oriental". Mais tardias são as
ocupações de origem celta - os castros - como o povoado fortificado de Chibanes,
do século III a. C., que alia elementos de origem céltica e itálica (cerâmica
campaniense)". Também em Pedrão se encontram vestígios de um período de ocupação
da Idade do Ferro, com a construção de muralhas e casas feitas em pedra, e
parcialmente em taipa, e que seriam cobertas por elementos vegetais; possuíam
uma lareira circular. Os seus habitantes dedicavam-se à agricultura e criação de
gado, assim como às actividades específicas da região: caça, pesca de peixe e
moluscos. Tinham relações comerciais com o Mediterrâneo Ocidental". O chamado
«Castelo dos Mouros», na encosta norte da Arrábida, é de facto um castro, já
ocupado no Bronze final, como o provam fragmentos de cerâmica ai encontrados, e
cuja ocupação se prolongou até ao século 1 a. C., sobretudo devido as condições
de defesa oferecidas contra o invasor romano. É possível que a Arrábida
possuísse um santuário da Idade do Ferro, o que se depreende pelo achado de uma
pequena escultura antropomórfica, em bronze, datável do século IV a. C., que foi
encontrada no sopé da colina de S. Romão, em Alferrar. Dadas as características
da serra, poderemos afirmar que ela reúne as condições para ser considerada um
local sagrado, ao longo dos séculos, e por crenças de origem diversa. De grande
importância é a ocupação romana de toda esta região, que se pode subdividir em
três zonas: uma, de características essencialmente industriais, no estuário do
Sado (Tróia e Setúbal); outra, nas proximidades de Vila Nogueira de Azeitão,
correspondendo a uma área agrícola; e ainda Sesimbra, onde os achados são
disperses e pouco abundantes . 17
A via romana que de Lisboa conduzia a Emérita passava primeiro por Equabona e
Caetobriga, povoações que se situavam nesta região. Segundo Jorge Alarcão, «a
via Partia Provavelmente do Seixal». «Equabona, distante 12 milhas de Olisipo,
corresponde possivelmente a Coina-a-Velha»" uma das aldeias da freguesia de S.
Lourenço. Já Joaquim Rasteiro transcreve uma nota de José Leite de Vasconcelos
onde se lê: «A palavra Coina representa ainda, quanto a mim, a antiga Equabona,
designação de uma conhecida cidade da Lusitânia. A série das formas por que a
palavra primitiva passou até hoje poderá ter sido a seguinte:
Equábona>(E)quab(o)na > Cauna > Couna>Colna. A pronúncia popular actual supponho
que é Côina, e não Cóina, que é litteraria». Quanto a Caetobriga, são várias as
hipóteses levantadas: Chibanes, Alferrar ou, segundo Jorge Alarcão, «a colina de
S. Sebastião, na área urbana de Setúbal», visto que o sufixo briga «sugere uma
povoação sita num alto»". À volta de Setúbal, tal como em Tróia, existem
vestígios de cetárias, os tanques destinados à salga do peixe, que constituía a
base da economia da região; é o caso de Moinho Novo, Ponta da Areia, Senhora da
Graça, Cachofarra, Pedra Furada, Rasca, Comenda e Creiro, na zona este do
Portinho, onde ainda estão à vista. Na região de Azeitão muito provavelmente
existiram villae rusticae, destinadas à exploração agrícola; é o caso de
Machados de Baixo, Alferrar, S. Romão, Arca da Água, Vinha Grande, Boa Vista,
Cabeço Gordo, Alres, Rego da Água, Esteval, Cruz da Légua e Painel das Almas.
Em relação a esta última, já Joaquim
Rasteiro afirmara: «Ao sueste do mosteiro dominico de Santa Maria da Piedade,
logo fora da cerca, que era vasta, num sitio chamado o Painel das Almas,
descobriram-se, ao metterem-se umas bacelladas, algumas sepulturas com vasos de
barro: isto seria por 1840, mas tudo foi perdido... Passa pelo local a estrada
do Hospício. As águas do passado inverno (1894) fizeram-lhe umas escavações, em
que vi grandes pedaços de telha, do gênero imbrex, e de tíjolos grossos:... teem
a forma de quarto de circulo, dos empregados na fabricação de columnas
cylindricas; medem 0,m21 de raio por 0,mO5 de espessura.» O Padre Manuel Frango
de Sousa diz ai ter encontrado em pesquisas de superfície: «seixos estalados e
negros, que parecem terem sido utilizados em lareiras... vários pesos de tear,
feitos de pequenos tijolos com furo; três tijolos de formato de quarto de
círculo ... ; metade da parte de baixo duma mó manual; muitos Pedaços de telhas
romanas ... ; muitos pedaços de peças de cerâmica de uso doméstico, desde dólios
(talhas grandes) a ânforas e a peças finas ... ; alguns grandes pedaços de
"opus" (argamassa de cal com tijolo moldo ... )». Segundo o mesmo investigador,
esses vestígios aparecem «nos dois lados da estrada do Hospício, onde se chama o
Painel das Almas, até uma distancia de 30 ou 40 metros, e também no valado da
"vinha de São Domingos. No Verão de 1988, foram abertas valas no local, para
instalação de condutas de água. A pesquisa então realizada pelo Padre Manuel
Frango de Sousa revelou, na Rua do Hospício, «um pequeno tanque (0,90/1,80/90)
rebocado a "opus" fino, varias estruturas de muros e um chão de C(opus" que pode
ser chão de casa ou de pátio»". Na Rua do Fisco, apareceu «UM pedaço de "opus"
que se estendia por baixo da estrada e que era chão dum pátio ... »". As paredes
têm pouco mais do que os alicerces, já que as pedras das construções devem ter
sido utilizadas nos edifícios da zona. É possível que a parte de cima do sitio
ocupado, correspondente à vinha de S. Domingos, venha a revelar restos mais bem
conservados, porque as terras «que foram descendo do alto, devido às cavas,
devem ter protegido as construções». Por muito limitados que sejam, estes
achados vêm definitivamente confirmar a existência de uma Villa romana em Vila
Nogueira de Azeitão. Quanto à estrada romana, não podia coincidir com a actual,
já que ai se encontram vestígios de uma construção". Os restos da via romana
devem localizar-se na estrada Setúbal-Cacilhas, num caminho que conduz a S. Luís
da Serra, ainda com um empedrado que pode ser de origem romana".
Nesta região e em particular na Arrábida, existiram com muita probabilidade
templos romanos. Segundo o Padre Luiz Cardoso, no «Monte Fermosinho, que fica
quasi sobranceiro ao Convento dos Padres Arrabidos... se tem descoberto em
diversos tempos algumas ruirias, de que inferem alguns haver alli hurn templo
consagrado ao Deos Apollo. Outro templo, dedicado a Neptuno, houve na vertente
da mesma serra, onde hoje se vê a fortaleza de Outão; porque resolvendo o Senhor
Rey D. João IV , por conselho de Mathias de Albuquerque, conde de Alegrete, se
accrescentassem novas obras aquella fortaleza; e abrindo-se os alicesses para os
baluartes da terra, se achão hum pedaço de huma estátua de marmore com Iguns
versos em louvor de Neptuno. Huma estátua do mesmo Neptuno de metal entre as
ruirias de hum edifício, que mostrava ser templo da mesma divindade, entre as
quaes havia muitas arquitraves, pedaços de columnas de marmore fino com suas
bazes, e algumas pedras com inscrlpçoens Latinas, em que se dava àquelle sitio o
nome de Promontorio de Neptuno ... »"'. O mesmo autor refere que foram
encontradas «medalhas de cobre dos Emperadores Vespasiano, Tito e Adriano».
Todos estes achados foram oferecidos pelo superintendente das obras, Manuel da
Silva Mascarenhas, a D. Pedro de Lencastre, arcebispo eleito de Braga, com
excepção da estátua de metal, certamente de bronze, que foi fundida para a
artilharia da mesma fortaleza. Joaquim Rasteiro confirma o achado de moedas
romanas, a maioria de bronze, e algumas de prata, uma das quais com a legenda
Claudius Caesar Augustus, em redor do busto do imperador". Nenhum dos outros
achados arqueológicos foi confirmado , mas é provável que tenham existido, dado
que o Padre Luiz Cardoso se serviu da «Geografia da Província do Alentejo, «que
dos manuscritos do Chantre de Evora Manoel Severin de Faria, deixou quasi
acabada Sebastião Antunes de Azevedo» . Não se sabe quando terminou a ocupação
romana nesta região, mas é provável que, tal como em Tróia, se prolongasse ate
ao século IV. A presença árabe nesta zona, como dissemos, ficou sobretudo
registada na toponímia. Joaquim Rasteiro surpreende-se de não ter encontrado
moedas árabes na região, «pois aquelle grande povo dominou por séculos em quasi
toda a península hispânica e estacionou tanto nas proximidades do Tejo e do
Sado»". O Padre Manuel Frango de Sousa está convencido de que existiu uma Quinta
«onde está o Convento no tempo da ocupação árabe». Não temos dúvidas dessa
ocupação. Infelizmente, os restos arqueológicos não foram encontrados e os
chamados «castelos dos mouros» são designações populares para vestígios de
outras épocas. Verdadeiramente «do tempo dos mouros ficaram as duas cubas de
Alcube» e uma forma de estar que leva Jaime Cortesão a falar de «terras
moçárabes de Azeitão» e a considerar que a Bacalhoa, com os seus revestimentos
de azulejos, é uma «das mais belas ilustrações da história portuguesa e,
maiormente, das suas origens moçárabes.