Da Arrábida a
Manhattan
Alexandra Lucas Coelho PÚBLICO
Sexta-feira, 14 de Maio de 2004
Um dos fins desta história é o número 257
da Bleeker Street (Greenwich Village, Manhattan). Aqui está
estabelecido o Murray's, "gourmet" de queijos que se declara o
mais antigo de Nova Iorque. Na tábua de celebridades, entre
gorgonzolas e roqueforts, verdadeiro luxo são uns pequenos
embrulhos de 250 gramas com uma estampa a dizer: "Queijo de
Azeitão - produção artesanal, Fernando de Oliveira Simões,
Quinta do Anjo". São quatro vezes mais caros do que comprados
ao quilo na origem, e estão entre os mais caros do mundo. Cada
queijinho custa 20 euros.
Rui Simões nunca pôs o pé em Manhattan,
nem tem vagar para isso. Trabalha seis dias e meio por semana,
11 meses e meio por ano. "Chego aqui antes das cinco da manhã,
saio às sete da tarde e ainda vou para as ovelhas." Aqui é a
queijaria que leva o nome de seu pai, onde actualmente se
produzem mais de metade de todos os queijos de Azeitão
certificados. Fica na Quinta do Anjo, vila aos pés da Serra da
Arrábida, o princípio desta história.
Os queijos que Rui, o irmão José e as respectivas mulheres
todos os dias fazem, só com folga ao domingo, são os mesmos
que os "gourmands" de Nova Iorque vão comprar ao Murray's - e
também se encontram noutras cidades americanas, Boston,
Filadélfia, Washington, ou em países como Canadá,
Grã-Bretanha, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Suíça.
O ciclo do princípio ao fim - entre a Arrábida e, por exemplo,
Manhattan - leva uma semana, explica Victor Simões, empresário
luso-americano dono da Lusogourmet, que exporta queijos de
Azeitão Fernando de Oliveira Simões. "O queijo sai da serra
numa quinta-feira, vai de avião para a América na terça, é
desalfandegado na quarta e entregue no cliente na quinta,
sexta."
Artesanato delicado, o Azeitão. Macio, como deve, aguenta no
máximo até três semanas. Depois, endurece - também se come,
mas já deixou de ser quem era.
Só se faz na Arrábida, serra que antes de monges e poetas já
seria de erva boa. Ora venham lá.
Saudades da Beira
É uma manhã de faz-chuva-faz-sol. Domingos Soares Franco está
à nossa espera em Vila Nogueira de Azeitão. Membro do clã José
Maria da Fonseca - com património de quintas e vinhas em
redor, e casa no coração da vila -, este enólogo de 48 anos é
o presidente da ARCOLSA (Associação Regional dos Criadores de
Ovinos da Serra da Arrábida), que une os produtores de queijo
de Azeitão. Neste momento há apenas cinco com produção
certificada. A Quinta de Camarate, do nosso anfitrião, é um
deles - dos mais pequenos, mas o mais antigo.
Foi na família de Soares Franco que nasceu o queijo de
Azeitão, por saudades da Beira: "O pai de um tio trisavô do
lado do meu pai, Gaspar Henriques de Paiva, era de Monsanto,
ao pé de Castelo Branco. Veio daí para cá e por razões
nostálgicas mandou vir um rebanho de ovelhas e um pastor, que
começou a fazer queijos. Era um queijo tipo serra, com mais de
um quilo. Nessa altura ninguém fazia queijos cá. Isto, em
1830."
Décadas mais tarde, no princípio do século XX, o avô de Soares
Franco comprou a Quinta de Camarate. Damos com ela a três
quilómetros de Vila Nogueira. Começa junto a umas oliveiras
que nem dois homens abraçavam. "Têm mais de mil anos", calcula
Soares Franco. Subimos por um caminho de terra, entre vinhas e
pastagens, até ao casario: adega, currais, residência e
queijaria, nossa primeira paragem.
Aberta a porta, respira-se um ar acre, que se entranha. É tudo
branco, paredes, tecto, chão. O chão acumula a humidade - e
anda-se literalmente sobre água. Chegando à sala onde o futuro
Azeitão ganha forma, um não-comedor de queijo cairia fulminado
pelo cheiro a coalhada. Tudo continua a ser imaculadamente
branco, até à bata, ao barrete e às botas de borracha de José
Vinhas, 47 anos, queijeiro de dois calos na base de cada
polegar, de tanto prensar para dentro da forma, queijo após
queijo. Não pára ao entrarmos. Ana, 41 anos, sua mulher, limpa
a cuba de 100 litros onde o leite esteve num banho-maria de
sal e flor de cardo misturada com água. Mais não leva o
Azeitão.
"O Zé é de Trás-os-Montes", apresenta Soares Franco. "Veio há
17 anos, aprendeu com o queijeiro que cá estava." Que também a
outros, hoje concorrentes, ensinou. "Isto é um trabalho de
sete dias por semana", continua o enólogo. "O Zé começa às 6h
e trabalha até às 16h."
Segundo as regras da União Europeia, o queijeiro não pode
tocar em nada enquanto está a mexer no queijo. "Até as
torneiras são [accionadas] com o pé", exemplifica Soares
Franco, apontando para a alavanca por baixo do lavatório. "Se
esta queijaria não fosse tipo hospital não nos deixavam fazer
queijo."
As 130 ovelhas de Camarate - que neste momento andam a pastar
- são ordenhadas mecanicamente de manhã, às 6h30, e de tarde,
às 16h30. "O leite é analisado todos os dias. O grande segredo
é a qualidade do leite. Tem que estar perfeito." Vem da
ordenha por uns tubos até um depósito de refrigeração na sala
ao lado desta, onde fica a "dois, três graus". Depois é
despejado para a cuba.
"A solução de cardo e água fica previamente de molho", explica
Soares Franco, apontando à janela os cardos altos lá fora.
"Isto existe na Serra da Estrela, na Arrábida, em Serpa, dá-se
em zonas muito calcárias."
A flor de cardo é decisiva: tem a enzima vegetal que faz o
leite coagular.
"Junta-se aqui tudo na cuba durante 45 minutos a 32 graus. No
fim tira-se o soro e a pasta sólida vai para cima da francela
[a espécie de mesa metálica onde José Vinhas pressiona a massa
coalhada], e dá-se forma nos acinchos [formas]." Cada futuro
queijo é espremido três vezes, com intervalos para repouso. O
soro que vai saindo é aproveitado para manteiga, quando se lhe
tira a nata, e finalmente para requeijão.
Tal como veremos noutras queijarias, em Camarate faz-se um
pouco de manteiga, que neste momento não se comercializa por
não ser pasteurizada. Sendo de leite cru de ovelha, ainda está
à espera de certificação.
Das mãos de José Vinhas, as formas seguem para a primeira
câmara de cura, onde agora vamos. O mostrador da porta
hermética indica 93 por cento de humidade ("é quase chuva") e
11 graus de temperatura. Aberta a porta, lá estão centenas de
queijos arrumados por prateleiras, num percurso de serpente,
da direita para a esquerda, desde os mais recentes aos mais
antigos. Os mais antigos já estão menos húmidos, mais amarelos
e têm uma cinta de gaze. Aqui dentro, os queijos cumprem um
ciclo de "15, 16 dias". Têm de ser lavados e virados todos os
dias.
A segunda câmara, a de "encascar", é semelhante, mas menos
húmida e mais quente. Já cheira a queijo-queijo, e os queijos
já são amarelos e têm casca. "Aqui ficam dez dias. Acabam de
fermentar por dentro." Saem para ser vendidos. "Ao todo, desde
a ordenha até ao mercado, são 26 dias", diz Soares Franco.
"Por lei, têm que ser pelo menos 21, mas eu gosto de dar mais
um bocadinho, que ficam mais saborosos."
Uma amostra segue para a câmara de provadores, que
semanalmente verifica a qualidade de todos os produtores de
Azeitão. É a última etapa. "Vendo a 20 euros o quilo às lojas
e a 7,5 euros a particulares."
Vida de ovelha
Se o segredo é o leite, espera-se das ovelhas que dêem muito e
bem. "Todos os meses vejo quanto estão a dar", explica Soares
Franco, enquanto saímos da queijaria a caminho dos currais. "A
média cá em casa anda por volta dos dois litros e meio por
dia. Mas já tive uma que dava cinco e meio... São máquinas de
dar leite. Uma ovelha que me dê três litros é tratada nas
palminhas, vai-me deixando os filhos e eu vou apurando níveis
de produção muito elevados."
A mais velha de Camarate tem quatro anos. "Dão leite assim que
têm o primeiro borrego, normalmente aos oito, nove meses, cá
em casa. Borregas que nasceram em Dezembro estão a dar leite
lá para Outubro."
Já aos carneiros, apenas se exige que levantem as patas da
frente com frequência: "Só servem para acasalar."
Na sala de ordenha, há 40 "boxes", cada uma com um recipiente
em baixo. "Mete-se aqui a ração e como elas são gulosas vêm e
ficam logo trancadas." Por uma espécie de torniquete, enquanto
o leite é tirado.
Ao lado é o dormitório, um "open space" com chão de borracha
natural. "Elas adoram isto, é mole, quente no Inverno e fresco
no Verão. A palha é muito mais barata, mas tem muito mais
problemas com doenças."
Noutro curral há palha, mas é o das ovelhas destituídas,
digamos. "As que não dão leite." Segue-se a maternidade,
composta por umas divisórias individuais. Está deserta. Não é
manhã de nascimentos.
Às pastagens, de jipe. Ladeadas as vinhas do Quinta de
Camarate tinto, ziguezagueamos até o rebanho ficar à vista,
todo em volta de um sobreiro. São ovelhas de raça Lacaune, e
não saloia, tosquiadíssimas. Estão quase a entrar de férias.
"No final de Maio, paramos o queijo. Depois recomeçamos em
Outubro. O queijo amanteigado começa a suar com o calor."
O rebanho dá pelo fotógrafo ajoelhado nas ervas e vai
investigar ao perto. Mas rapidamente se desinteressa, e parte,
a caminho de qualquer coisa que se coma. Num bom ano estas
ovelhas dão 16 mil queijos.
A Quinta com Vista para o Mar
Atravessa-se Setúbal, sobe-se pela serra e lá em cima, com
verde à volta e vista para o Castelo de Palmela e para o
Atlântico, fica a Quinta do Viso Grande. Aqui vivem Pedro e
Marta Fontes, os produtores de queijo "mais próximos do mar"
na região demarcada. Têm três filhos pequenos, 220 ovelhas, um
jovem pastor e duas sorridentes queijeiras.
Na queijaria, o cenário é o mesmo que vimos em Camarate (ver
texto principal), branco, imaculado, todo artesanal. Na
primeira sala, há prémios expostos, primeiros e segundos
lugares na feira anual da Quinta do Anjo, a mais importante -
este ano ficaram em segundo, e Camarate ficou em primeiro. Há
folhas de papel vegetal com os selos da casa. E um tabuleiro
com flores de cardo desfeitas, soltando perfume. "É um senhor
que nos apanha sacas de cardo", diz Marta, 35 anos. "Têm
imensos picos."
Estão a fazer queijo há sete anos. A quinta é da família de
Pedro, que já produzia leite para vender. Até que Marta deixou
Lisboa - trabalhava no sector de tratamento de imagem e
pré-impressão do PÚBLICO - e foi aprender a fazer queijos de
Azeitão com o queijeiro da Quinta de Camarate. Coordena agora
o trabalho de Fátima e Teresa, duas irmãs de Setúbal. Tal como
os mestres com quem aprenderam, continuam a prensar os queijos
à mão, um a um, e param de produzir no Verão. Trabalham num
ritmo um pouco mais suave que o de Camarate e bastante mais
suave que o da família Oliveira Simões (ver texto principal):
cinco dias e meio por semana, das 9h às 18h. Uma vez por mês,
o queijo vai à câmara de provadores. "São 30 pessoas, e, no
mínimo, sete a provar", diz Pedro, 42 anos. "As que
classificam pior e melhor não contam, e faz-se uma média das
restantes." Há quatro categorias em avaliação: crosta, forma e
consistência, textura e cor da pasta, aroma e sabor.
A 18 euros o quilo, os queijos da Quinta do Viso Grande seguem
para o "gourmet" do Corte Inglês; para os "free shops" dos
aeroportos de Lisboa, Porto e Faro; para cinco hipermercados
Continente ("em contacto directo com os charcuteiros, sem
passar pela central de vendas"), que representam mais de
metade das receitas; e para o estrangeiro, através do agente
Tradifood - Canadá, Bélgica, Itália, Estados Unidos. "Noutro
dia soubemos por um amigo que o nosso queijo estava numa
charcutaria ao pé de Central Park", conta Pedro, que notou uma
quebra nas importações americanas durante a guerra do Iraque.
"Durante a guerra não vendemos um queijo."
O rebanho - raça Lacaune, como o de Camarate - não está longe.
Saindo da queijaria, já se ouve, recolhido no curral, que o
céu ameaça outra vez chuva. No fim-de-semana houve tosquia, e
no chão há sacas de lã amontoadas. "Não vale nada. Não são
ovelhas de carne nem de lã."
O ano passado deram 19 mil queijos.
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Guia do Queijo de Azeitão
Ingredientes: leite de ovelha cru, flor de cardo (Cynara
Cardunculus L.), água e sal.
Tamanho: 100 g., 250 g.
Forma: cilindro achatado
Crosta: amarela
Pasta: amarela e amanteigada
Região demarcada: concelhos de Sesimbra, Setúbal e
Palmela
Produtores actualmente certificados: Fernando de Oliveira
Simões (T: 212 881363), Quinta de Camarate (T: 212
180227), Quinta do Viso Grande (T: 265 571658), Fernando
Jorge Monteiro (T: 212 871272), Vítor Fernandes (210
807796)
Associação de produtores: ARCOLSA
Início da certificação através do selo Denominação de
Origem Controlada (DOC): 1994
Controle de qualidade: inspecções sanitárias e
tecnológicas, análises físico-químicas e microbiológicas
ao leite e queijo.
Consumo: à temperatura ambiente
Conservação: à temperatura ambiente ou congelado em
papel de alumínio
Corte: em fatia completa, e não por cima, meia hora
antes de consumir
Fonte: ARCOLSA |
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