Frei
Agostinho da Cruz (cujo nome secular era Agostinho Pimenta), nasceu em Ponte
da Barca, Alto Minho, e faleceu em Setúbal.
Foi educado nos Paços do infante D. Duarte - onde contactou com o 3º'
Duque de Aveiro e seu filho, o Duque de Torres Novas - e era irmão
do literado Diogo Bernardes, que acompanhou D. Sebastião a Alcácer
Quibir para escrever a epopeia da vitória que o jovem rei fantasiava.
Tomou o hábito de S. Francisco a 3 de Maio de 1560, incorporando-se
depois na ordem arrábida.
O
noviciado passou-o na serra de Sintra, no Convento de Santa Cruz,
de que tomou o nome. Foi mais tarde guardião do convento de Ribamar, cargo
a que renunciou, pedindo para passar para o Convento da Arrábida onde
viveu até aos 76 anos, quase 20 anos, de início numa miserável cabana
que fizera com as suas próprias mãos e, mais tarde, numa pequena edificação
que lhe mandara construir o Duque D. Álvaro: «Não havia commodo na
serra para o servo de Deos viver solitario; a cella em que S. Pedro
de Alcantara tinha vivido, estava nella o Veneravel Fr. Diogo dos Innocentes.
Por esta razão fiado no favor do Duque lhe pediu Fr. Agostinho quizesse
Sua Excellencia mandar-lhe fazer uma pequena e pobre caza para nella
se abrigar do ardor do sol e do frio do Inverno. Prometeu-lhe o Duque,
que sim. Como o Duque se não lembrou logo da promessa, foi o servo
de Deos obrigado a fazer entretanto huma pequena choupana tecida dos
ramos dás arvores da serra, os quaes mesmo cortou com suas mãos. Nella
passou quasi seis meses. Só mais tarde, o Duque foi pessoalmente vizita-lo
e pedir-lhe que escolhesse logo, à Sua vista, o terreno para a sua
casa,, que era em uma pequena distância da Senhora da Memória.. Começou
a caza e como era pouca a fabrica, acabou-se com brevidade.» Recordá-lo é vê-lo
cultivar o seu pequeno jardim e horta, fazer os seus trabalhos de madeira
e com flores, dar de comer às aves que vinham pousar na sua mão e ouvi-lo
conversar consigo, com Deus, com a Virgem, com a natureza e ainda com
a sua querida serra da Arrábida, em gritos e queixas de paixão como
nos revela a sua maravilhosa poesia, simbolizada na Elegía II da Arrábida.
Elegia II
(Da Arrábida)
Alta Serra deserta, donde vejo
As águas do Oceano duma banda,
E doutra já salgadas as do Tejo:
Aquela saüdade que me manda
Lágrimas derramar em toda a parte,
Que fará nesta saüdosa, e branda?
Daqui mais saüdoso o sol se parte;
Daqui muito mais claro, mais dourado,
Pelos montes, nascendo, se reparte.
Aqui sôbolo mar dependurado
Um penedo sobre outro me ameaça
Das importunas ondas solapado.
Duvido poder ser que se desfaça
Com água clara, e branda a pedra dura
Com quem assim se beija, assim se abraça.
Mas ouço queixar dentro a Lapa escura,
Roídas as entranhas aparecem
Daquela rouca voz, que lá murmura.
Eis por cima da rocha áspera descem
Os troncos meio secos encurvados,
Eis sobem os que neles enverdecem.
Os olhos meus dali dependurados,
Pergunto ao mar, às plantas, aos penedos
Como, quando, por quem foram criados?
Respondem-me em segredo mil segredos,
Cujas primeiras letras vou cortando
Nos pés doutros mais verdes arvoredos.
Assim com cousas mudas conversando,
Com mais quietação delas aprendo
Que outras que há, ensinar querem falando.
Se pelejo, se grito, se contendo
Com armas, com razão, com argumentos,
Elas só com calar ficam vencendo.
Ferido de tamanhos sentimentos
Fico fora de mim, fico corrido
De ver sobre que fiz meus fundamentos.
Ali me chamo cego, ali perdido,
Ali por tantos nomes me nomeio,
Quantos por culpas tenho merecido.
Ali gemo, e suspiro, ali pranteio;
Ali geme, e suspira, ali pranteia
O monte, e vai de meus suspiros cheio.
Ali me faz pasmar, ali me enleia
Quanto colhendo estou da saüdade,
Que por toda esta terra se semeia.
Ora me ponho a rir da vaïdade,
Ora triste a chorar com quanto estudo
Erros solicitei da mocidade.
Tudo se muda enfim, muda-se tudo,
Tudo vejo mudar cada momento:
Eu de mal em pior também me mudo.
Soía levantar meu pensamento
Assentado sobre estas penedias
Duras, eu duro mais nelas me assento.
Punha-me a ver correr as águas frias
Por cima de alvos seixos repartidas,
Que faziam tremer ervas sombrias.
As flores, que levava já colhidas,
Passando pelos vales enjeitava
Por outras doutra nova cor vestidas.
O livre passarinho, que voava,
Cantando para o céu deixando a terra,
Da terra para o céu me encaminhava.
Cuidei que se esquecesse nesta Serra
A dura imiga minha natureza;
Mas donde quer que vou lá me faz guerra.
Oh! quem vira naquela fortaleza
Rodeada de fogo de amor puro,
Daquele amor divino esta alma acesa!
Quão firme, e quão quieto,
e quão seguro
No campo se pusera em desafio!
E quão brando sentira o ferro duro!
Mas se agora de mim me não confio,
Se fujo, se me escondo, se me temo,
É porque sinto fraco o peito frio.
Alevantam-se os mares; e pasmo, e tremo:
Vejo vento contrário, desfaleço,
A corrente das mãos me leva o remo.
Confesso minha culpa, bem conheço
Que por mais graves males que padeça
Menos padecerei do que mereço.
Mandais, Senhor, que busque, bata, e peça,
Eu busco, bato, e peço a vós, Senhor,
Sem haver cousa em mim que vos mereça.
Com os braços na Cruz, meu Redentor,
Abertos me esperai, co lado aberto,
Manifestos sinais do vosso amor.
Ah! quem chegasse um dia de mais perto
A ver cos olhos de alma essa ferida,
Que esse coração mostra descoberto!
Esse, que por salvar gente perdida
De tanta piedade quis usar,
Que deu nas suas mãos a própria vida.
A sangue nos quisestes resgatar
De tão cruel, e duro cativeiro,
Vendido fostes vós por nos comprar.
Padecestes por nós, manso Cordeiro,
Pisado, preso, e nu entre ladrões,
Ardendo o fogo posto no madeiro:
Arçam postos no fogo os corações.
Teófilo Braga afirmou
que o lirismo de Frei Agostinho da Cruz «distingue-se por um exaltado
fervor místico, não tão simples como o de São João da Cruz ou de
Frei Luís de Leão mas ainda assim admirável como expressão sincera
de uma alma no meio do falso formalismo cultural imposto pelos
jesuítas e como desabafo na intolerância feroz do Santo Ofício.
Em 1619 «a morte recebeu-o nos braços meiga, risonha e solícita
como um anjo de redenção». O povo, «numa piedosa lenda» contava
que quando lhe reproduziram a máscara com gesso, depois de morto,
sorria alegremente, concluindo que não era «só um bom padre mas
um inspirado e um santo.» Cumprindo o seu desejo de «nunca se afastar
da amada serra», D. Álvaro determinou que ficasse sepultado no
convento que durante tantos anos habitara. Recordar Frei Agostinho
da Cruz é reviver ainda, por este motivo, a «cena fantástica da
transladação do seu cadáver, após a morte num hospital de Setúbal,
dali até à serra, por mar, numa lista recoberta de tapetes e flores
nalguma destas tardes milagrosas em que a baía enorme, unido o
céu e a terra, rasga o pórtico azul do paraíso. O guardião Frei
José da Esperança transformou a cela de Frei Agostinho da Cruz
numa ermida dedicada a Santo António a qual, mais tarde, devido
ao tempo e ao abandono, entrou em ruína.
Da Oração
Doce quietação de
quem vos ama,
Em serviços, Senhor, que tanto quanto
Amado sois, tão longe o fim de tanto,
Subindo mais, e mais, mais se derrama:
Ardendo por arder em viva chama
De amor do vosso amor, a voz levanto;
Sinto, suspiro, choro, colho, e planto
Ao som doutra suave que me chama.
Onde se vai, Senhor, quem vos
ofende?
Donde levais, Deus meu, a quem vos segue?
Onde fugir se pode uma de duas?
Morto por quem o mata que pretende,
Ou que extremos de amor há que nos negue
Quem culpas nossas chama ofensas suas?
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