Uma casa foi ao chão. Há mais quatro para demolir. O
zelo utilizado nos processos destas construções ilegais não é, porém,
coerente com o fechar de olhos perante mansões edificadas no Parque
Natural da Arrábida, único no mundo. A área protegida tem 26 anos, mas
não dispõe de plano de ordenamento, tendo chegado mesmo a perder a sua
classificação. Serve para quê?
Não ficou uma parede que guarde segredos inconfessáveis nem um
vestígio de que ali existiu a casa de José João Muralha. Apenas um
recado, dirigido ao actual ministro do Ambiente, Isaltino Morais, em
letras gordas, deixado no muro de uma azinhaga: «Ó Tino! Já viste a casa
do Vilarinho?»
A casa de Muralha foi a primeira das três habitações, com ordem de
demolição, da Piedade, que foi abaixo nesta pequena aldeia de tradições
rurais, agora ameaçada por loteamentos urbanos. Estava ilegal. Os
serviços do Parque Natural da Arrábida (PNA) levantaram os autos, os
tribunais decidiram e o Governo cumpriu: derrube-se. Um processo que
demorou 15 anos para atingir o apocalíptico e último capítulo.
A próxima casa poderá ser a de Florentino Duarte, 50 anos, um dos
últimos agricultores da região, que construiu a moradia onde reside com
a mulher, dois filhos e um neto com o dinheiro que amealhou durante os
14 anos de emigrante na Suíça. Os 80 metros quadrados de construção
foram considerados excessivos pelo PNA, cujo regulamento não permite
mais de 40 metros por hectare de terreno e um máximo de 200 metros,
mesmo que o proprietário seja dono da serra inteira.
Mas as áreas detectadas na Quinta de São Tiago, situada no Vale de
Picheleiros, são bastante superiores. Na verdade, são duas quintas,
detidas pelo presidente do Benfica, Manuel Vilarinho. Numa, ergue--se
uma casa apalaçada de 384 metros quadrados, noutra está edificada uma
casa agrícola de cento e oitenta. Nos seus 9,5 hectares de terreno,
entre árvores de crescimento rápido, que encobrem os imóveis,
passeiam-se espécies tão improváveis naquela serra como gazelas.
Mansões da humanidade
O Parque Natural que Jorge Sampaio vai visitar em breve nasceu há 26
anos e é uma das áreas protegidas mais antigas do País. Considera-se uma
relíquia única no mundo a sua vegetação original – o maquis
mediterrânico – que é, na opinião das câmaras de Setúbal e de Palmela,
das associações ambientalistas e de académicos como Viriato Soromenho
Marques, susceptível de vir a ser classificada património da humanidade.
O decreto que criou o PNA previa um plano de ordenamento em menos de
seis meses que ainda hoje está por apresentar. A portaria que se seguiu
em 1980, regulamentando esta área protegida, considerava «nocivo o
potencial incremento da população residente ou de segunda residência,
bem como a proliferação liberalizada de todos os tipos de construções».
Quanto menos casas, melhor, dizia-se já há 22 anos.
Apesar daqueles bons princípios, o que o Presidente da República vai
ver, se quiser aventurar-se pelos caminhos de terra batida que cruzam o
Vale de Picheleiros, outrora ocupado por actividades agrícolas e de
pastorícia que o PNA se propunha proteger, é uma sucessão de dezenas de
vivendas de vários pisos, vazias durante a semana, e quase sempre
acompanhadas pelo azul cintilante das piscinas.
É em Picheleiros que vive Paulo Alves, um comerciante de 39 anos,
inquilino de seu pai, Mário Alves, que tenta travar a demolição da sua
moradia – a Paulcar – de dois pisos e piscina. Em 15 de Julho, os homens
das máquinas bateram-lhe à porta: queriam avançar e traziam o Ministério
Público e a GNR à ilharga. Só a ausência de um mandado e da notificação
ao inquilino sustiveram a execução da ordem do tribunal.
Um murro no destino
«Qual é afinal o critério?», questiona Paulo Alves. Num raio de 500
metros a partir da vivenda Paulcar, de 130 metros quadrados, ilegal é
certo, a vista alcança várias construções de área superior, onde se
incluem as casas de figuras públicas como Herman José (que não conseguiu
evitar o embargo dos anexos da sua mansão), Jaime Fernandes e o já
citado Manuel Vilarinho.
Vê-se ainda a Quinta Ravina, da família Mouco, e os seus dois pisos
brancos, que trepam a inclinação do morro. O que fora licenciado para
este terreno, com acordo do PNA, referia-se apenas a uma casa de apoio
agrícola de 15 metros quadrados, ou seja, o tamanho de uma sala de estar
comum. O que existe é uma moradia de 495 metros quadrados e piscina.
Embora os técnicos do PNA tenham levantado um auto de embargo à casa
e à piscina, as últimas palavras do actual director do Parque, Celso
Santos, sobre este processo, prometiam uma «análise em conjunto com
outros que se encontram em situação idêntica, a fim de se tomar uma
decisão análoga e coerente para a resolução do problema».
«Porquê eu e mais dois e não mais 30 ou trezentos?», desafia Paulo
Alves: «Todas as casas de Picheleiros estão ilegais e, se alguém decidir
que todas vão abaixo, sou o primeiro a entregar a chave da minha
propriedade.»
O comerciante está convencido de que se trata de um processo de
vingança pessoal. Já passou mais de uma década desde que seu pai
esmurrou um antigo alto quadro do PNA, alegadamente por ter ofendido a
sua mãe.
Vingança ou não, em nenhum outro processo se vislumbra a firmeza da
decisão dos serviços da área protegida: «Obra totalmente clandestina,
com a agravante de ter sido embargada pela Câmara de Setúbal.» No
surrealismo deste caso, não falta uma penhora do imóvel em causa,
executada por uma institução bancária, devido a problemas financeiros do
pai Alves. Como a penhora não foi levantada, o banco pôs esta casa por
demolir à venda. Felizmente, não apareceu ninguém para ser enganado.
A Suíça na Arrábida
Se houvesse um plano de ordenamento do PNA não é certo que Manuel
Vilarinho tivesse vencido o primeiro round, na luta jurídica que trava
com o Parque. Mas não há e Vilarinho, para já, venceu.
Os seus primeiros projectos mereceram um vigoroso parecer negativo do
PNA, alegando que a casa de 384 metros quadrados era superior ao limite
máximo de 200 metros, conforme a portaria de 1980, que tem funcionado
como «plano de ordenamento preliminar».
Em tribunal, o actual presidente do Benfica ganhou em primeira
instância, defendendo que estava a edificar sobre uma construção
pré-existente. Por outro lado, o juiz foi insensível à argumentação do
Parque de que «a proliferação de construções é nociva aos valores
paisagísticos, ecológicos e culturais». Sem fundamento de direito, disse
o juiz. Por outras palavras, não há lei que o sustente.
Quando não são os refúgios legais, a propósito da ineficácia do
«plano preliminar de ordenamento», que triunfam, entram em cena outro
tipo de argumentos para obter mais área de construção: ruínas
pré-existentes, como também invocou Vilarinho, e exploração agrícola,
que deveria ser vocacionada para casas de apoio, celeiro e telheiro para
abrigo das colheitas.
As actividades agrícolas, a existirem, serão, no entanto,
clandestinas, já que, aquelas que estão declaradas nos processos
consultados pela VISÃO, não aparecem no terreno. «Quem não tem casa
legalizada ou é pobre ou é parvo», desabafa Rui Passos, presidente de um
movimento cívico acabado de constituir designado P"la Arrábida. «Com
tantas explorações agrícolas, até parece que esta serra é a Suíça»,
ironiza, por seu lado, um habitante da Aldeia da Piedade, a terra das
demolições.
O mistério da casa amarela
A exploração agrícola, cujo projecto foi declarado em 1997, por João
Alberto Caeiro, não existe. Na sua propriedade de 1,7 hectares, ergue-se
uma enorme mansão amarela, de cinco pisos, que domina a encosta do Alto
das Necessidades. No ano anterior, os serviços do Parque haviam dado
parecer desfavorável (e vinculativo) ao projecto de «obras de
conservação e restauro», numa inevitável ruína pré-existente, porque
ultrapassava em 179 metros quadrados a área anterior de 414 metros.
O técnico que indeferiu o pedido considerou que este agredia a linha
de cumeada desta zona de «grande relevância na estrutura fisiográfica do
PNA» e ameaçava várias espécies de orquídeas com estatuto de protecção.
A resposta seguiu numa carta dirigida ao director do Parque: «Sinto-me
consternado enquanto defensor esforçado da preservação da Natureza, aqui
tomado como delapidador de propósitos inconfessionáveis.» E continua:
«Uma família que hipotecou os seus bens e possivelmente o seu futuro,
para poder conviver diariamente com a Natureza, não procura destruir ou
por alguma forma desvirtuar os encantos da sua indefesa anfitriã.»
Depois de receber o projecto de exploração agrícola e de uma reunião
com o proprietário, o PNA decidiu «nada ter a opor» às alterações
requeridas, «desde que a cor prevista para o exterior da construção
(rosa-velho) seja substituída por uma cor mais neutra (bege ou ocre
claro)». A mansão ficou amarela e é tão grande que faz parecer a casa do
seu vizinho, Otelo Saraiva de Carvalho, o estratego do 25 de Abril, uma
humilde habitação, apesar dos seus dois pisos brancos.
Condomínios de luxo
Além das construções particulares, o PNA começa a ser assaltado por
condomínios fechados, um convite à «proliferação de casas de segunda
residência», que se pretendia evitar. Tem saído nas páginas de
imobiliário dos jornais um anúncio apelando à compra de casa «no coração
da Arrábida».
E é, de facto, no coração da área protegida (embora perto de
depósitos de lixo de obras de construção civil), como sugere o nome
Casais da Serra, uma aldeia rural cercada pelo verde exuberante das
encostas, que se ergue um aldeamento em banda, de 22 moradias luxuosas,
T3, de dois pisos. Cada uma custa 295 mil euros (59 mil contos).
Os terrenos, considerados urbanizáveis no PDM de Setúbal, com o
acordo do Parque, foram cedidos, nos anos 60, pela Casa de Palmela,
outrora dona de grande parte da Arrábida, para uma escola destinada aos
filhos dos operários agrícolas.
O estabelecimento de ensino foi, entretanto, desactivado por falta de
alunos. E, de um dia para o outro, foi demolido. Rapidamente, ali nasceu
um condomínio novo-rico chamado Quinta da Serra.
Manuel Holstein Beck, 69 anos, teria uma palavra a dizer na
misteriosa transacção do terreno doado pela sua família. Mas o herdeiro
do duque de Palmela já desistiu de travar lutas contra o PNA: «Sinto-me
farto, farto, farto!» Está-lhe atravessado o pedido de remodelação, que
incluía uma ampliação da garagem do chalet do Portinho da Arrábida, que
lhe pertencia, e que foi prontamente recusado pelo Parque.
O chalet acabou por ser vendido e os actuais proprietários fizeram,
segundo Holstein Beck, obras que ampliam para o dobro a construção
existente. «Não se percebe qual é o critério do PNA, se notas de mil, se
influências poderosas», sugere Luís Oliveira Rodrigues, 56 anos,
contabilista e um filho da Arrábida: «Não vejo qualquer vantagem em
manter um Parque Natural nestas condições.»
Projectos para o Portinho
É um dos lugares mágicos da serra, apesar dos dois restaurantes à
beira-mar que descaracterizam o Portinho da Arrábida. Mas as duas
construções poderão, em breve, não passar de um mero pormenor
inestético, face ao volume esmagador de um aldeamento projectado para a
encosta.
É ali que uma empresa chamada Inecil planeia um condomínio luxuoso de
23 moradias, totalizando perto de 5 mil metros quadrados de área
coberta. António Paramés, da Inecil, garante que já houve conversações
com o PNA e com a Câmara de Setúbal sobre este investimento que atinge 5
milhões de euros.
Mas Celso Santos, director do PNA, cita, por seu lado, as
modificações introduzidas no Plano de Ordenamento da Orla Costeira
(POOC) da região, que incluem «medidas preventivas impeditivas da
construção». A encosta em causa é, no entanto, considerada urbanizável,
no PDM de Setúbal, e o parecer do Parque, neste caso, não vincula
nenhuma decisão da autarquia. POOC, autarquia e PNA
– qual deles falará mais alto quando o projecto for submetido a
aprovação?
«Não sou um texugo»
Com 26 anos, a Arrábida não só carece de um plano de ordenamento como
de um centro de interpretação e acolhimento ambiental, como acontece em
qualquer área protegida que se preze. Chegou a haver um projecto para a
zona do Alambre. Segundo a placa de informação da obra, ali foram gastos
1,6 milhões de euros (320 mil contos). A placa desapareceu entretanto,
do local, ao lado do portão fechado a cadeado. Os favos, com aparência
de construção pré-fabricada, ficaram envoltos pelas estevas, sinal de
abandono.
Nem Florentino Duarte, o agricultor que poderá ver a sua casa
demolida em breve, aceitou ser realojado neste local, quando o Governo
se sensibilizou para o seu caso: «Não sou nenhum texugo para viver no
meio do mato.»
Numa visita surpresa, Ferreira de Almeida, secretário de Estado do
Ordenamento do Território, testemunhou in loco o degradante cenário. E
comunicou, em despacho interno: «Pude constatar um lamentável exemplo de
quase abandono de um equipamento financiado com dinheiros públicos, que,
apesar de inaugurado há alguns anos, não ofereceu qualquer préstimo.» E,
mais à frente, delibera ao Instituto da Conservação da Natureza, «já que
o PNA deu mostras de não o conseguir fazer», que dê utilidade a estas
instalações e que apure qual foi o investimento realizado bem como as
fontes de financiamento.
«Isto nem no Estado Novo»
Entre tantas feridas na Arrábida, só faltava a perda da sua
classificação. Em 14 de Outubro de 2001, o PNA deixou de ter existência
jurídica, devido à falta de um plano especial de ordenamento (ver caixa
O Parque que não existiu). Durante um ano, até à publicação de um
decreto-lei (204/02, de 1 de Outubro), a área protegida deixou de o ser.
O ministro Isaltino Morais assegurou que o diploma acabado de sair
está dotado de efeitos retroactivos, de forma a que todas as agressões
entretanto cometidas não beneficiassem do vazio legal. No entanto, a
publicação da lei pode não ser o úlimo episódio mas apenas o início de
uma longa novela recheada de argumentos jurídicos.
«Nem no Estado Novo se fazia isto
– as leis não retroagem e este decreto é manifestamente
inconstituicional.» Ana Merelo, 53 anos, é advogada do agricultor
Florentino Duarte e do antigo proprietário da única casa derrubada até à
data na Arrábida. Ao saber da caducidade da classificação da área
protegida não perdeu tempo. Segundo a jurista, a execução da ordem
judicial foi promovida pelo Ministério Público, na qualidade de
representante do Parque: «Como o PNA deixou de existir, esta acção
deixou de ter fundamento.» O caso prossegue nos tribunais, já que os
actuais proprietários pretendem participar criminalmente contra o
Ministério Público e contra o director do Parque, por invasão de
propriedade privada e pela destruição do imóvel.
A própria advogada também enfrenta um processo de demolição da sua
casa, na aldeia da Piedade, considerada ilegal pelos serviços da área
protegida. Mais uma vez, a caducidade do PNA foi invocada, em 15 de
Setembro, e as consequências daí resultantes, «que não podem deixar de
ser o fim das acções judiciais».
Falta de quê?
De acordo com Celso Santos, o plano de ordenamento da Arrábida, o
grande pecado de omissão desta área protegida, não foi ainda elaborado
por falta de meios. O director do Parque sustenta que dispõe apenas de
13 vigilantes e 12 técnicos, num total de 40 funcionários, que têm de
gerir não só o PNA como a Reserva Natural do Estuário do Sado.
O ministro do Ambiente «incendiou», porém, o Convento da Arrábida,
cenário «não escolhido por acaso» para dar posse ao novo presidente do
Instituto da Conservação da Natureza, quando disse que as áreas
protegidas não gastavam todo o dinheiro disponível. No caso da Arrábida,
revelou, na presença de Celso Santos, a execução orçamental não
ultrapassava os 30 por cento: «É, pois, falacioso o argumento, sempre
invocado, de que os meios são escassos», acusou Isaltino Morais.
O secretário de Estado do Ordenamento do Território, Ferreira de
Almeida, solicitou, entretanto, a intervenção da Inspecção-Geral do
Ambiente (IGA), que abriu um inquérito nos serviços do Parque e que
pretende vasculhar os processos de construção na área protegida.
Embora não tenha conhecimento de nenhuma situação em concreto, o
governante não exclui a possibilidade de haver casos susceptíveis de
investigação criminal. Uma vez que são as câmaras municipais (Setúbal,
Palmela e Sesimbra) que licenciam as construções, também a
Inspecção-Geral da Administração do Território (IGAT) foi chamada aos
inquéritos.
Ferreira de Almeida promete ir até ao fim: «Ninguém ficará impune. Se
se descobrir que houve ilegalidades no jardim zoológico do senhor
Vilarinho ou em qualquer outro caso, retiram-se todas as consequências,
doa a quem doer.»x